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sábado, 31 de maio de 2014

O amor que (ainda) não morreu


*Ouça All we'd ever need - Lady Antebellum

           Hoje, mais uma vez, a cidade adormeceu com uma chuva vezes miúda, vezes graúda. Hoje eu estive durante horas sentada no sofá da sala pensando nas voltas que a minha vida deu. Faz quantos anos desde que eu mudei de país? Uns cinco, seis? Talvez até mais. Eu até sei a data, pois lembro bem da minha despedida no aeroporto, mas prefiro não usar datas precisas. Datas exatas machucam muito mais que datas hipotéticas. Datas de términos, de despedidas, do dia da demissão, da nota baixa na prova de cálculo. Tudo isso perfura mais a carne que um dia que você nem lembra bem. Foi em janeiro? Ah, nem sei. Pode ser que tenha sido em maio. Sei lá quanto tempo faz desde que eu decidi fugir dos meus fantasmas. E falando em fantasmas, essa noite eu sonhei com você. Foi um sonho ruim, e eu acordei com a ânsia de pegar o celular e te ligar só pra saber se você estava bem. Não liguei, é óbvio. Mas passei o dia com a sensação de que tinha esquecido algo.

          Pus Lifehouse pra tocar e fui atingida por uma maré brava de lembranças suas. Não é sempre que eu penso tanto em você, mas quando penso, penso muito. E isso é sempre muito ruim. Senti um perfume parecido com aquele que você usava. Tinha Mediterrâneo no nome, não é? Eu lembrei. Fui num pub desses que eu só entro pra comprar uma dose de whisky pra fingir que eu bebo. Num pub desses eu quase me apaixonei por um cara que tinha a barba igual a sua. Deu saudade de sentir teus pelos roçarem meu pescoço desnudo, mas aí acho que eu engasguei com a droga do whisky e acabei perdendo o foco.

          All we'd ever need toca enquanto eu componho mais uma carta que você nunca irá receber. Não por eu não ter coragem de enviar, mas por ter certeza que você não merece as palavras que eu te escrevo enquanto desmancho a maquiagem cara que eu uso. Descasco o esmalte vermelho das unhas enquanto penso em até quando vou continuar te escrevendo. Tomo um gole de café e me permito pensar, especificamente, no teu rosto. Olhos médios, de um castanho escurecido. Barba mal feita, com um sinal próximo ao olho esquerdo. Boca rosada e nariz proporcional. Cabelo preto, sempre bagunçado e sempre cheiroso. Te descrevendo assim até parece que você parece com qualquer pessoa, mas só eu sei o quanto tua beleza é rara e gostosa de ser conhecida, desfrutada. Só eu sei o gosto que tua boca tem enquanto te mimo ou arranho tuas costas nuas. Só eu te senti de verdade, me desculpe a pretensão. No fundo você sabe que é verdade.

          A madrugada chega enquanto eu encaro a única foto sua que eu trouxe comigo. Até por descuido. Ela estava dentro de um livro que eu trouxe pra ler enquanto não fazia novos amigos na cidade nova. Nem sei qual o peso que isso tem, miligramas, talvez. Mas nas minhas mãos ela pesa toneladas. Esmagam minhas mãos pequenas e pouco calejadas. Valores e pesos absolutos às vezes não valem de nada. Enquanto miligramas pesarem mais que toda a minha mobília, eu continuarei aqui, sentada a essa mesinha, te escrevendo. Talvez um dia esta fotografia fique tão leve que até mesmo o vento possa dar conta dela, talvez. Talvez um dia ela voe janela a fora e você conheça um pouco da minha nova cidade. Mas enquanto ela pesa toneladas, tudo o que eu posso fazer é guardá-la dentro do livro onde eu a encontrei. Talvez um dia eu te devolva, quem sabe, não é? Quem sabe...

sábado, 17 de maio de 2014

Tempestade

         
*Ouça Storm, Lifehouse 

          Um engarrafamento insuportável parou a cidade inteira. A chuva piorou tudo. Sentei em um banco do lado da janela no ônibus e permaneci ali por mais de duas horas e meia. Fez frio e eu deixei o casaco em casa. Vi a chuva cair, arrastando terra e pedra, embaçando os vidros dos carros, e eu continuava ali, implorando mentalmente pra ela te lavar de mim. Vi a chuva escorrer pelo lado de fora da janela. Escrevi seu nome ali, naquele embaçado. Os pingos escorriam pelo vidro e parecia que o céu estava chorando comigo por você. Seu nome continuava ali, me encarando, enquanto eu chovia por você e o céu chorava por mim.
          Enquanto arrumava o apartamento, encontrei uma carta que você me escreveu bem no início. Sua letra meio torta e desengonçada me dizia o quanto você me amava. Achei uma caixa cheia de lembranças nossas. Achei também as fotos que eu iria usar pra te fazer uma surpresa. Achei até uma carta que eu escrevi e esqueci de te entregar. A chuva continua caindo, lavando as ruas da cidade e eu continuo aqui, me perguntando quando é que Deus vai te lavar de mim.
          Você ficou feito tatuagem. Feito marca de queimadura. De queda de bicicleta. Você ficou feito cicatriz. Ficou pra lembrar como dói gostar tanto assim de alguém. E que marcas ficam para sempre (dependendo exclusivamente do quanto dure o seu para sempre), mas o amor não. O amor se esvai. E cada carro que ultrapassa o meu ônibus me faz pensar em quão efêmeras as coisas são. E cada carro leva um traço da lembrança mais bonita que tenho de nós dois. Seu rosto perde cor, brilho e luz. Perde forma e nitidez. O vidro continua embaçado. E eu continuo sem saber o que fazer com as fotos e as cartas.
          Olho seu nome escrito no vidro embaçado e choro. Choro o que não chorei quando você decidiu partir sem mim. Viagem sem volta, você me avisou. Chorei ali, no meio de gente que eu nunca havia visto na vida, tremendo de frio e cansaço da tua ausência. Chorei baixinho por saber que sem mim cê vive bem. Até que ponto nós nos pertencíamos? Até que ponto éramos "nós"? O céu chora comigo esta noite. "Eu te amo, mas isso não é o suficiente." O amor nunca é o suficiente.
          Amor é elo, não corda. Não é o que te prende, é o que te faz ir sabendo que pode esticar ou forçar, não vai arrebentar. Amor é elástico. Amor é escolher ficar. É ter certeza que lá fora há outras bocas e outros gostos, e preferir estar aqui. Dentro do "nós". Amor não é o que te confunde, é o que te dá certezas. É ter porto para atracar a qualquer momento. É ter abrigo nos dias de tempestade, e companhia nos dias quentes. Amor é o que cola, restaura e cura. O que foi, não é amor. O agora é amor. O futuro pode ser amor. Mas não, o amor não é o suficiente. Não sempre. O amor é o suficiente para você?